sábado, agosto 16, 2008

“Um ponto num conto” 

Entraram na sala aos tropeções. Samuel foi arrastado pela turma, uma onda violenta e sonora. Sentado, mole e meio adormecido, apercebe-se que á sua volta tudo é uma contínua mancha cinzenta, a sala de aula, o rosto ausente da professora, o dia lá fora, e a dois passos, o despedaçado bairro onde vive.

Está gelado, que os dias têm sido frios e os agasalhos escassos, repara que está enjoado, o estômago incomodado pelo abandono a que nunca se habitua. Lembra-se que algures não muito longe, jovens como ele saberão a que sabe um leite quente acompanhado de pão fresco com manteiga saborosa, saberão a que sabe dormir numa casa a sério, a que sabe o aconchego do edredão e de como deve ser bom enfrentar um dia de Janeiro vestido com uma roupa quentinha. O dia está tão cinzento que manchou todo o céu e debotou todas as coisas no horizonte, os edifícios, as árvores, os carros, a gente, tudo….

Impossível reter o olhar na sala de aulas que os colegas não lhe trazem boas recordações, o sorriso vago da professora a sua voz sumida, não lhe transmitem qualquer animo, se calhar era melhor sair daqui, ainda pensou, mas ir para onde?

Lá fora esticam-se para o alto os prédios que parecem muros de uma prisão de onde nunca sairá – má sorte nascer pobre.

O Seu olhar penetra na última janela do prédio mais distante, o que quase já não se vê e essa janela é apenas um ponto. Quem será que lá vive? O que haverá por trás do prédio? AH! Há o mar! O mar…

Subitamente tombam-lhe nos ouvidos os vagalhões de ondas oceânicas, azuis e salgadas, ouve nitidamente as ondas embrulhadas com o vento, sente a areia molhada debaixo dos pés, o ar cheira a sal, a mar, a chuva e vento. Tudo está vivo, inteiro, colorido e poderoso.

Impossível contrariar a vontade de se abeirar da rebentação das ondas que vêm correndo brincar com os dedos dos pés. Não sabe como foi, mas num instante o mar lhe beijou o peito magro. Era bom estar no meio de tanta vida, de tão imenso poder, de tão vibrante cor. Como seria fácil adormecer neste berço líquido, nadar ou repousar e nunca mais ver o cinzento da vida. 

A campainha tocou, a aula terminou, já quase todos saíram menos o Samuel.
- Então Samuel, não sais hoje? Pergunta a professora impaciente por ir beber um café.

- S’tôra, o Samuel está todo branco e encharcado, disse a Mónica. 
- Mas…não pode ser, está afogado. Disse baixinho a professora quando olhou o seu olhar azul, liquido, trespassado de água.

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