sábado, agosto 16, 2008

Castelo de Ourém

violeta em Constância

a pernoca é minha, o rio, é o rio Almonda

Se um dia

tudo o que existe existisse ao contrário,

como num calendário imaginário sem dias nem meses nem anos

apenas momentos de uma demente lógica,

os relógios não dessem nem vendessem horas

alarves grades de dura prisão

seriam memória de um tempo sem coração.

Se os anjos fossem nossos vizinhos

e nós etéreos e transparentes entes apenas estrelas cadentes.

Os pássaros voassem dentro de água

funda e plana, emplumados e destros,

os peixes nadassem dentro do ar

limpo e aberto, esguios e cintilantes,

e nós não andassemos com os pés no chão

cinzento e sólido que nos prende

soltos aéreos e vivos andassemos no ar azul

não andando sim deslizando

como o vento entre as fragas

e as nuvens nos eternos dias.

Se os astros as cores e os sabores

com humanas palavras falassem,

os humanos com emoções respondessem

na língua do silêncio e do secreto saber.

Se lutar fosse amar,

morrer fosse renascer,

parar fosse recomeçar

e tudo o que existe existisse ao contrário.  

9 e 10 Dezembro 07

20-06-2005 PSICOLOGIA

Filtro incapaz, tudo retém, nada liberta em paralelo mantém o bom e o mau. Água insalubre, a mistura indistinta do que deve ficar e do que tem que sair. Matéria amorfa, a união descasada do que quero e do que não quero. Solo infértil onde crescem mostrengos vegetais filhos dos sentidos, do real e do irreal. Queria filtrar esta massa desnatural e descolorida. Queria receber a vida, sabendo escolher entre o que serve e o que não serve. Respirar o ar válido e vivo e não um fumo espesso, opaco e inútil. Que capacidade em mim está ausente? Que poder de mim se apartou? Onde os redescobrir ?

“Um ponto num conto” 

Entraram na sala aos tropeções. Samuel foi arrastado pela turma, uma onda violenta e sonora. Sentado, mole e meio adormecido, apercebe-se que á sua volta tudo é uma contínua mancha cinzenta, a sala de aula, o rosto ausente da professora, o dia lá fora, e a dois passos, o despedaçado bairro onde vive.

Está gelado, que os dias têm sido frios e os agasalhos escassos, repara que está enjoado, o estômago incomodado pelo abandono a que nunca se habitua. Lembra-se que algures não muito longe, jovens como ele saberão a que sabe um leite quente acompanhado de pão fresco com manteiga saborosa, saberão a que sabe dormir numa casa a sério, a que sabe o aconchego do edredão e de como deve ser bom enfrentar um dia de Janeiro vestido com uma roupa quentinha. O dia está tão cinzento que manchou todo o céu e debotou todas as coisas no horizonte, os edifícios, as árvores, os carros, a gente, tudo….

Impossível reter o olhar na sala de aulas que os colegas não lhe trazem boas recordações, o sorriso vago da professora a sua voz sumida, não lhe transmitem qualquer animo, se calhar era melhor sair daqui, ainda pensou, mas ir para onde?

Lá fora esticam-se para o alto os prédios que parecem muros de uma prisão de onde nunca sairá – má sorte nascer pobre.

O Seu olhar penetra na última janela do prédio mais distante, o que quase já não se vê e essa janela é apenas um ponto. Quem será que lá vive? O que haverá por trás do prédio? AH! Há o mar! O mar…

Subitamente tombam-lhe nos ouvidos os vagalhões de ondas oceânicas, azuis e salgadas, ouve nitidamente as ondas embrulhadas com o vento, sente a areia molhada debaixo dos pés, o ar cheira a sal, a mar, a chuva e vento. Tudo está vivo, inteiro, colorido e poderoso.

Impossível contrariar a vontade de se abeirar da rebentação das ondas que vêm correndo brincar com os dedos dos pés. Não sabe como foi, mas num instante o mar lhe beijou o peito magro. Era bom estar no meio de tanta vida, de tão imenso poder, de tão vibrante cor. Como seria fácil adormecer neste berço líquido, nadar ou repousar e nunca mais ver o cinzento da vida. 

A campainha tocou, a aula terminou, já quase todos saíram menos o Samuel.
- Então Samuel, não sais hoje? Pergunta a professora impaciente por ir beber um café.

- S’tôra, o Samuel está todo branco e encharcado, disse a Mónica. 
- Mas…não pode ser, está afogado. Disse baixinho a professora quando olhou o seu olhar azul, liquido, trespassado de água.

Poema de Mia Couto, da obra "idades cidades divindades"

AVESSO BÍBLICO

No início

já havia tudo.

Mas Deus era cego

e, perante tanto tudo,

o que ele viu foi o Nada.

Deus tocou a água

e acreditou ter criado o oceano.

Tocou o chão

e pensou que a terra nascia sob os seus pés.

E quando a si mesmo se tocou

ele se achou o centro do Universo.

E se julgou divino.

Estava criado o Homem.